quarta-feira, 3 de setembro de 2008

SOBRE PARAFUSOS E CÂMARAS TEMÁTICAS

Assinam esse artigo: Espaço Cubo, CUFA, Wander Antunes, Volume, Confraria dos Atores e Movimento Panamby

Às vezes somos levados a pensar que grandes obras de arte são produzidas sem nenhum esforço por parte de seus criadores, esses seres geniais. E temos essa percepção porque, muitas vezes, seus autores são os primeiros a negar qualquer nível dele em suas realizações. Geralmente estão enganados, ou fazendo charme, porque, vamos combinar?!, nada de bom acontece sem que algum nível de esforço tenha sido empregado em algum momento. Mas o que de fato acontece é que quase sempre, dada à paixão envolvida, seu realizador nem percebe o quanto investiu, o quanto se superou para chegar ao resultado de um determinado trabalho. Coisa de quem faz o que gosta.

E se o mundo está repleto de grandes obras desenvolvidas individualmente também há grandes obras empreendidas por um coletivo, embora muitas vezes, por uma enorme injustiça, ela não seja percebida como tal. Uma grande obra coletiva é essa que os artistas cidadãos vêm realizando em Mato Grosso. Eles têm suado a camisa para levar boa música, bom teatro, boa literatura, bom cinema, a leveza da dança, para levar alegria e reflexão, para ampliar os horizontes, enfim, de todos os que vivem nesse estado. E, no entanto, a importância e alcance de seu projeto estético-social muitas vezes não é percebida, não é defendida e não é compreendida.


E essa incompreensão ocorre, muitas vezes, por parte daqueles que têm o dever de perceber e ampliar o alcance social dessa grande obra coletiva, até por conta dos papéis que assumiram, das posições em que se colocaram. Posições pelas quais quase sempre lutaram arduamente, mesmo quando alegam tê-las assumido quase à revelia, apenas para atender ao tantas vezes evocado clamor popular. Que nada! Em 99% dos casos o que fizeram foi suar a camisa para ocupar posições de mando. E quem suou a camisa para obter o poder de tomar decisões em nome de uma comunidade perde o direito à incompreensão, perde o sagrado direito à ingenuidade e à ignorância. Suas decisões trazem conseqüências, boas ou nefastas para o coletivo. O que não significa dizer que não tenham o direito de errar – que é humano – aqui e ali, quer dizer que precisam ser bons ouvintes, que devem migrar do erro pro acerto o mais rápido possível. Para acertar mais e errar menos é preciso ter apoio, aprender com a experiência do outro. Ninguém sabe tudo.


Eventualmente, na vida privada, o indivíduo que se especializou em uma determinada função pode até se dar ao luxo, o que quase sempre se revela má idéia, de se beneficiar menos da experiência dos outros. “Eu faço parafusos muito bem feitos, com eles pago meu caviar e ponto final, ninguém tem nada com isso”, podem dizer e ir tocando suas vidas. Na vida pública não! O personagem que se proponha a ocupar esse espaço não pode se dar ao luxo de entender só de parafusos. Por isso quem ocupa espaços públicos deve cercar-se de boa assessoria. E pra além dela, recorrer àqueles membros da comunidade que possam contribuir para a compreensão de um determinado tema.


A Assembléia Legislativa de Mato Grosso fez isso ainda há pouco, quando convocou uma Câmara Temática de Cultura para “estabelecer um canal de diálogo entre os governos municipais, estadual e federal, visando à estruturação de um planejamento voltado para o fortalecimento da política cultural do estado, respeitando as características de cada município”. Entretanto, seja por questões regimentais, seja por não ter permitido assento a um representante indicado pela comunidade cultural, a AL, também conhecida como “Casa do Povo”, não abriu espaço nessa câmara temática para as valiosas e generosas contribuições que a comunidade cultural poderia oferecer. E os cinco membros dessa câmara, três servidores da própria AL e dois outros indicados por deputados, fizeram, após uma série de oitivas, recomendações contraditórias, com destaque para a de número 6, totalmente desastrosa.


E porque essa apreciação aparentemente tão negativa do trabalho da câmara temática? Porque, para começar, a bela introdução, em parte, que abre o documento não parece ter sido escrita por quem fez as recomendações nele contidas. Convenhamos, quem constrói o pensamento reproduzido a seguir não poderia concordar com a recomendação de descontinuar ações culturais, feitas mais adiante pela câmara: “O século XXI nasceu com o desafio de ir além do reconhecimento antropológico da diversidade cultural como maior patrimônio da humanidade. Não se trata de abandonar a contínua tarefa de reafirmação deste princípio – trabalho constante de pesquisadores e educadores – mas de agregar a essa tarefa a urgência do enfrentamento de sua dimensão política e econômica. Para tanto, necessita-se fortalecer os conceitos que sustentam os discursos e transformam a palavra em ação, para que se consiga a transformação desejada”. E, de fato, uma rápida pesquisa no Google demonstrou que a parte constituída por idéias maiúsculas dessa introdução, como o trecho reproduzido acima, não pertence aos membros da câmara, fora fruto do velho e bom control C/control V. Ou seja, primeiro a gente copia, depois a gente cola – prática comum em trabalhos escolares realizados por alunos preguiçosos. E se por um lado não passa pela cabeça de ninguém afirmar que a câmara temática tenha sido preguiçosa, ou pretendeu que a reflexão de outro fosse tomada como sua, conclusão a que alguns podem chegar já que ela não citou a fonte, também é verdade que, e isso passa sim por nossas cabeças, ela foi de uma monumental deselegância ao omitir o autor do texto: o Prof. Dr. José Márcio Barros, da PUC mineira. E também é verdade que, uma vez não tendo o citado José Márcio Barros tomado parte nessa câmara, talvez seja melhor esquecermos a introdução, até porque ela parece pouco sintonizada com as recomendações propostas, bastante reveladoras daquilo em que seus membros parecem realmente acreditar, sobretudo a sexta delas: “Os Projetos aprovados não poderão ser contemplados no exercício subseqüente”. Uma recomendação em total contradição com outra feita pouco antes, a que propõe prioridade na “aprovação de projetos pela contribuição que os mesmos possam proporcionar ao desenvolvimento cultural de nosso Estado”. Mas a descontinuidade desses projetos no ano seguinte, mesmo quando seus autores entendam que eles devam ter continuidade – já que projetos aprovados não poderão ser ‘contemplados’ no exercício subseqüente – não equivaleria ao desmonte de ações capazes de proporcionar o desenvolvimento cultural em nosso Estado? A idéia é essa? Mato Grosso ganha com isso? Ou, fazendo uma leitura simplista e certamente equivocada da coisa, o que se quer é reduzir tensões, garantindo um rodízio de proponentes?


Essa proposição de descontinuidade não se aplica, parece-nos, às ações institucionais, como, a título de exemplo, as empreendidas pela UFMT – cuja coordenação cultural atualmente está sob o comando de Fabrício Carvalho, também membro da câmara temática a convite do deputado Alexandre César – que certamente consideraria uma violência a interrupção de suas temporadas de concertos sinfônicos ou de suas outras ações culturais de caráter continuado. Mas infelizmente, e talvez inconscientemente as recomendações da câmara temática traduzam isso, é como se fora do mundo institucional, hierarquizado e até, em não poucos casos, controlado politicamente, não houvesse proposição digna de continuidade. E tem! Sim, elas existem! Talvez excessivamente livres, dirão alguns. Que vulgares! Torcerão seus narizes os adeptos da elegância vazia. Mas que grau de controle exercemos sobre isso? Perguntarão outros, em seu secreto desejo de controlar o mundo. E a todos eles precisamos dizer que fora do mundo institucional existem proposições da maior importância em curso, cuja continuidade deve ser assegurada. E é preciso dizer que todas essas ações, quando analisadas em conjunto, constituem uma grande obra coletiva – uma ação meio que complementando outra.


Só que ao contrário dos grandes gênios, aqueles do começo deste texto, que ou não notam ou não admitem o grau de esforço que fizeram, os artistas mato-grossenses sabem o quanto lhes custa empreender suas ações, realizar suas obras. Dificuldades que não se manifestam no fazer em si – e quando se apresentam são bem-vindos desafios enfrentados com prazer, são um convite ao crescimento –, elas estão na já mencionada ausência de resposta daqueles que deveriam compreender a importância social de sua ação e apoiá-los. E eles só têm a lamentar que uma câmara temática (à qual parece faltar um parafuso, ou talvez algum esteja meio frouxo) se reúna e ao fim recomende a descontinuidade do apoio a suas ações, mesmo que elas tragam grande contribuição ao desenvolvimento artístico e cultural do estado.

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